quarta-feira, 9 de outubro de 2013

A revolta do chão que pisei

Agora que passou o trauma, chegou a altura de vos convidar a ler o relato do que realmente aconteceu naquele dia fatídico. Foram dias duma depressão imensa, aqueles que se seguiram ao violento nó cego que levei dum pedaço de chão que acordara mal disposto. Fui acompanhado por um psicólogo que à terceira sessão pediu escusa para me aturar retirando-se para um convento de monges, pouco dados à fala, a fim de encetar uma desintoxicação de delírios mentais que ouvira naquelas três sessões de oratória demente. Não sei se já recuperou, mas o seu olhar não denunciava coisa boa quando me tentou estrangular. Adiante, vou deixar as lamechices e começar por onde se devem começar os relatos, ou seja, pelo princípio, as coisas têm de ter princípios.
O corpo humano tem vários órgãos que só incomodam quando têm fartura daquilo para que estão destinados a guardar. Um desses órgãos é a bexiga que, quando já não tem espaço livre, empurra, o que a empanturra, para um canal de irrigação que vai desde a sua porta à torneira que pende murcha e sem mais nenhuma função do que dar destino à carga que a bexiga lhe envia e, com ela, dependendo dos locais, rega plantas, faz rupestranices nos azulejos ou encharca a tampa da sanita quando nos esquecemos de a levantar.
Numa caminhada a bexiga transborda com facilidade, devido aos líquidos que se bebem, enchendo o canal de irrigação que vai empurrando todo o fluido para ponta da torneira. Esta nem sempre pode ser aberta quando mais necessitamos. Tudo à nossa volta é um imenso WC mas não podemos, em espaço aberto, expor as nossas virtudes podendo correr o risco dessas virtudes se tornarem motivo de chacota e o calvário da nossa vergonha. Procuramos então a traseira de uma arvore uns arbustos frondosos uma gruta desabitada um pedregulho vistoso ou um caniçal cerrado.
Foi protegido por um desses caniçais que dei asas ao aperto que me consumia à já algum tempo. Deixei todo o suco mictório sair desalmado, aliviando a carga que me causava desconforto e deixando espaço para que nova carga ocupasse o lugar deixado vago. Parecia que a bexiga tinha crescido nas últimas horas tal o tempo que levei a despeja-la.
Quando o diluvio terminou já todo o pelotão passara e eu, cá por trás, atrasado, tentei encurtar caminho passando por um campo de abóboras. Nunca o ditado… «quem se mete em atalhos mete-se em trabalhos» teve tanta razão de ser um sábio e prudente pensamento popular.
De repente e sem nada que o fizesse prever, a catástrofe.
O chão ergueu-se da sua cama seca e árida e bate-me, com a fúria de quem está a ser violado, no nariz, a maior saliência que encontrou e na boca, para que ninguém mais fosse atormentado pelos disparates que dela saem.
Não sei porquê! Talvez, irritado por lhe ter molhado a casa!? Talvez cansado de tanto ser espezinhado pela insanidade de quem calcorreia pela sua pele estaladiça!? Sei que dei por mim a tentar perceber o que se passara e com que objecto havia sido atingido? Um triciclo? Uma bicicleta? Um automóvel? Um camião TIR? Um avião? O… Mike Tyson? Enquanto tentava resposta a tantas questões fabricadas na minha mente confusa, dei por mim esvaído em sangue que me saia pelas ventas do nariz inundando o chão, tal como fizera a urina quando lhe abri a torneira.
A névoa que me não deixa ver e pensar com a destreza e celeridade com que as pessoas normais raciocinam, abriu-se um pouco e deixou que a minha massa cinzenta tivesse um laivo de lucidez para concluir que, seria proveitoso, para mim, pedir ajuda a alguém que ainda estivesse por perto e que ouvisse o que naquela altura eu melhor conseguia replicar como pedido de socorro. Por sorte, nem em todos os caminheiros há aquela pressa de chegar ao fim, e, em primeiro. Foram esses, os que caminham embalados pela madornice da paisagem, que ouviram os urros que eu proferia na tentativa de chamar um pronto socorro.
Tal como o INEM, os ESNT responderam à chamada, só que mais depressa, e, de repente, fiquei rodeado por socorristas que tentavam garrotear-me para estancar o sangue, lavar-me a face pela senilidade e aliviar-me a alma pelo orgulho ferido. Sacaram das mochilas o SOS que tinham e foi com: lenços higiénicos, toalhitas higiénicas, pensos rápidos higiénicos, creme higiénico para lavar as mãos, e muitos mimos, que me aliviaram do desconforto de apresentar uma cobertura com as mossas deixadas pelos açoites que me infligiram.
A marcha foi retomada.
Acompanhado por pacientes companheiros, lá fui andando sem nada que perturba-se o meu aparelho motor nem a minha coordenação sensorial. Levava um ar limpo e apresentável mas, as mazelas cumpriam a sua tarefa e, aos poucos, as marcas da sua presença iam ficando mais nítidas, não tardando a que as zonas atingidas ganhassem formas de coisa hedionda.
O nariz ia crescendo tal como o do Pinóquio, só que sem necessidade de mentira minha, estava a ficar bem visível para que todos acreditassem. Da minha boca não saiam mais do que projetos de palavras pois os lábios pareciam ter sido injectados por verniz “botox” e eu quase não abria a cavidade bocal. A minha imagem, vista num relance ao espelho, era a do modelo que o Dr. Frankenstein usou para criar o boneco com que ele brincava nas horas de lazer. Enfim, nada que impedisse os membros inferiores de cumprir, até ao último metro, o caminho que tinha sido traçado para gozarmos umas horas de diversão e gosto pela aventura.
E é quando tudo parece claro, quando tudo parece não ter sinais de sarilhos, quando tudo parece um lindo lago azul coberto de nenúfares onde as libelinhas se estendem para serem seduzidas pelo sol brilhante que aquece e ilumina o vale verdejante, que o inesperado acontece.
E aconteceu a quem era o mais improvável acontecer.
Uns km e horas à frente, numa ravina de terreno movediço, o solo deu novo sinal de revolta e, num acto de subtil destreza, rasteirou, com adornos de malvadez, a companheira que escala paredes e dá gancho de krav, nossa amiga Catherine De Freitas.
Só vi quando já estava sentada, pensei que seria a posição escolhida para melhor focar o plano desejado para a foto que pretendia registar. Logo me apercebi que estava errado pelo movimento que à sua volta num instante se gerou, quase não deixando trabalhar os ESNT que já abriam as mochilas SOS.
Depressa tivemos a percepção de que a queda não fora apenas para deitar abaixo. O solo desta vez esmerara-se e golpeara sem dó nem piedade a nossa companheira infringindo-lhe um golpe profundo, no braço e… no orgulho.
Tratada, acondicionada e combalida, mostrou valentia e coragem ao deslocar-se por pé próprio até à estância que se encontra por aqueles lados e por onde passava a caminhada. Ali foi requisitado transporte para que a paciente fosse transportada ao hospital mais próximo para ser observada por um profissional de saúde que, na gíria, é usual ser chamado de médico. Sabe-se que lhe coseram o golpe, sabe-se que não detectaram ossos fracturados, calcula-se que tivesse saído em perfeita sintonia com a vontade de quilometrar os calcantes pois sabe-se que, no dia seguinte, andou por Sintra, percorrendo 30 km de serras e matas apesar… da perna com gesso!?
Foi uma caminhada que deixou marcas, só por uns dias, e deixou recordações, essas para sempre.

No outro dia fui eu ao hospital, outra aventura que se ainda me lembrar como foi, talvez vos conte…


PS: queria ilustrar isto com imagens da caminhada mas a insanidade tomou conta dos administradores e estes varreram todo o registo fotográfico. tentei uma do amigo do Frank mas era bonito demais

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